Texto por Cáttia Adrianna Nascimento Brito Lourenço, psicóloga e mãe de estudantes do 6º e 8º ano dos Anos Finais
Assisti pela primeira vez a série Black Mirror, em um projeto bem interessante do colégio dos meus filhos, em que os pais são convidados, uma vez ao mês, a debater sobre assuntos relacionados aos desafios na criação dos filhos.
Foi-nos apresentado Arkangel, segundo episódio da quarta temporada. Os protagonistas são Marie, uma mãe solteira, e Sara, sua única filha.
Esse episódio relata os limites do uso da tecnologia, que permite aos pais acompanharem e monitorarem seus filhos. Porém minha análise de hoje será sobre os elementos que não temos controle em nossas vidas, e na vida dos nossos filhos.
Logo na primeira cena, temos o relato de Marie sobre “não ser potente o suficiente” para conseguir ter um parto normal: “não consegui fazer força”, relata a mãe à enfermeira. E a seguir, seu primeiro susto na maternidade: Sara demora para chorar, logo após o nascimento, o que faz sua mãe se desesperar.
Numa outra cena, numa tarde em um parquinho infantil, Marie encontra uma amiga com um bebê, e vai cumprimenta-la. Enquanto isso, Sara brinca tranquilamente, até que um cachorrinho se aproxima dela, e ela resolve segui-la. Ao se dar conta de que a menina não estava mais no parquinho, sua mãe leva um segundo susto, e sai pela cidade, a sua procura. Com a ajuda de vizinhos, a menina é encontrada. Estava seguindo o tal cachorrinho.
A partir desse momento, Marie resolve ir a uma clínica experimental, e solicita a implantação “segura” de um chip no cérebro de Sara. Um chip que contém um localizador, e filtros de realidade, que podem ser acionados a qualquer momento pela mãe, para “proteger” a filha de situações que possam “elevar seu nível de cortisol”.
Assim cresce Sara, sem conhecer a latida real de um cachorro, a tristeza no rosto de um amigo, ou presenciar situações de brigas entre os colegas da escola. Até que um dia, por conta da pergunta de um amigo: “você já viu sangue?”, a garota resolve se espetar, para poder sangrar. Sua mãe, assustada com a cena, a leva para uma avaliação psicológica, e questiona se sua filha é autista. Pergunta a qual o profissional responde: “sua filha não teve aprendizagem sobre as emoções da vida real. Nunca expressou raiva”. A partir desse dia, sua mãe desliga o filtro de realidade, mas não sem curiosidade sobre determinados momentos da vida da filha. No entanto, mesmo se deparando com situações de mentira da filha, não a questiona, nem a supervisiona.
Um belo dia, resolve ativar o localizador do tablet conectado ao chip, e tem acesso a cenas da intimidade da filha, agora adolescente, bem como ao acesso a drogas.
O que podemos refletir sobre esse episódio tão profundo?
O desejo de Marie foi, após alguns sustos que a vida real nos impõe, proteger a filha. Mas ao invés disso, tornou Sara mais vulnerável aos perigos da vida, sem a presença concreta de um ser humano, que pudesse adverti-la, acompanhá-la e orientá-la, ao mesmo tempo que pudesse tolerar a angústia de permitir a filha ter suas próprias experiências, e aprender com as consequências de seus atos. Conforme Sara crescia, ela não teve a oportunidade de cair, chorar, se levantar, se lamentar, ser acolhida e continuar. E quando o filtro de realidade foi desligado do seu chip, foi lançada de uma única vez ao mundo real, com suas boas surpresas e crueldades, sem o amparo necessário para essa travessia.
Assim como Marie, muitas vezes em nossas vidas procuramos um atalho que acalme a nossa angústia diante do não saber o que fazer com as situações que a vida nos impõe, com as respostas que não temos para as perguntas que nos fazemos, sobre o que fazer com o que sentimos e com o que desejamos.
A tecnologia com certeza pode nos ajudar em centenas de situações da nossa vida moderna, mas mesmo assim o Google não será o especialista em nos dar respostas sobre nossas angústias, desejos e singularidade. Cabe a cada um de nós atravessarmos essa angústia, sem nos paralisarmos, e construirmos as nossas respostas, tão diferentes das respostas dos outros. E para isso, não há chip que possa nos ajudar.
Um abraço!
Cáttia Adrianna Nascimento Brito Lourenço
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